O nascimento do direito ao não esquecimento
Muito se fala sobre o direito ao esquecimento quando o assunto em pauta é a desconsideração dos maus antecedentes após determinado tempo. Qualquer indivíduo, verdade seja dita, independentemente do que tenha feito no passado, após quitar sua dívida com a sociedade, tem o direito de tocar sua vida em frente. Do contrário, estaremos celebrando penas de caráter perpétuo, cruéis em essência, vedadas, inclusive, pela nossa Constituição. De todo modo, esse texto não tratará do direito de ser esquecido. Tratará, por sua vez, do direito de não ser esquecido.
No final do ano passado, em outubro de 2021, Rogério Schietti, Ministro do STJ, em sede do RHC n. 153.214/CE, revogou a prisão preventiva imposta a um indivíduo que encontrava-se preso há quase 07 anos. Detido em 2015, de lá para cá o apenas acusado foi denunciado, a defesa apresentou (um) recurso, o Ministério Público as suas contrarrazões e, finalmente, a decisão de pronúncia (a que sujeita a pessoa ao Tribunal do Júri) foi confirmada. Ainda assim, não havia previsão para o júri acontecer. O Ministro, na ementa do seu julgamento, fez constar que esse cenário configurava letargia do aparato estatal e, por óbvio, constrangimento ilegal.
As quinze páginas que antecederam o dispositivo final do voto trouxeram dois capítulos distintos. O primeiro tratou do excesso de prazo e da razoável duração do processo [trazendo, ainda, discussões no cenário internacional acerca do tema]. O segundo se preocupou em narrar o caso do paciente. Mesmo assim, ao final da leitura, inobstante a decisão final de revogar, enfim, a segregação cautelar, algo ainda me incomodava.
O [mais que] óbvio, ao meu sentir, não exige muita explicação. Talvez baste anunciá-lo. Alongar uma decisão para explicar que a manutenção de uma pessoa presa sem condenação alguma por sete anos é tempo demais soa desnecessário. Mas tudo bem. Que pequemos por excesso. Só que o problema é outro.
Sim, o cenário apresenta evidente letargia do aparato estatal. E não, não se trata específica e diretamente do tempo de duração do processo [e logo, de eventual excesso de prazo e de sua razoável duração]. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa define letargia como estado de insensibilidade, sono profundo, desinteresse, indiferença e apatia. Por sua vez, o mesmo dicionário define processo como o ato de proceder, de ir por diante, seguimento, curso, marcha, sequência de estados de um sistema que se transforma, evolução. Este significa, então, movimento. Já aquele significa inércia.
Sem medo de incorrer em erro, posso compreender que letargia e processo caminham em sentidos opostos. Entendo eu, e aqui devo pedir escusas a quem entender de modo diverso, que poderemos falar em processo apenas quando os atos nele inseridos estiverem de fato acontecendo. Poderemos falar então em excesso de prazo quando esses atos de um processo estiverem efetivamente em movimento, mas após intervalos de tempo demasiadamente longos, muito além do razoável e do justificável.
Logo, quando o processo está parado e sem previsão de retomar sua marcha, não devemos falar em prazo para além do razoável. Sorte do paciente em questão que, neste caso, a Defensoria Pública do Estado do Ceará percebeu o que acontecia e fez todos relembrarem de sua existência [e do seu processo.
Claro que, no final das contas, o tempo de processo [e de prisão preventiva] soa e é abusivo. Porém, o ponto fulcral não é o tempo de duração, mas, sim, o esquecimento do preso. Questiono quando o Estado teria percebido esse excesso caso a defesa não tivesse o feito. Questão essa para ser pensada, apenas.
O direito que aqui trato é, pois, o de não ser esquecido, o que tem acontecido reiteradamente em nosso sistema de [suposta e prometida] justiça criminal.
Por fim, já que já me alongo neste texto, não há que se falar que a sobrecarga de processos no Poder Judiciário poderia justificar essa situação. Ora, essa mesma sobrecarga exige e justifica(ria), sim, uma melhor organização desses processos. Separá-los em categorias, umas mais e outras menos prioritárias, poderia ser um primeiro e importante passo [apenas a fim de exemplo e sugestão]. Entre processos de réus presos e soltos, os primeiros devem ter prioridades. Aqueles presos por mais tempo igualmente devem ter prioridade. E assim por diante. E, ah, se isso já estiver sendo feito, algum outro grave problema institucional precisa ser urgentemente resolvido.
t.s
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