Celas e contêineres, teoria e realidade

Recentemente, em maio de 2021, o Ministro Herman Benjamin decidiu não existir ilegalidade na manutenção de presos em contêineres. Decisão essa aconteceu em sede do Recurso Especial n. 1.626.583/Sc. Devo, então, voltar um pouco e melhor explicar o que aconteceu.

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina concedeu segurança pleiteada em mandado de segurança impetrado contra decisão do Juízo da Vara de Execução de Florianópolis que acabou por interditar as mal ou benditas celas contêineres.

O Ministério Público, entendendo que essa estrutura não atenderia os requisitos mínimos básicos de uma cela e que a manutenção de pessoas em contêineres representaria uma absurda situação humilhante e degradante, coisificadas como cargas a serem transportadas ou meras mercadorias, com violação de comezinhas normas e princípios básicos de ordem constitucional’, recorreu, então, ao Superior Tribunal de Justiça.

O conhecimento desse fato, lendo, assim, rapidamente, talvez tenha gerado indignação instantânea. Acredito que o mesmo aconteceu comigo, devo confessar. Aquela revolta natural por tratarmos presos como objetos ou, como dissera o Min. Marco Aurélio em sede da Adpf 347, como lixos. Mas permita-me trazer mais ingredientes à discussão. Conforme informações do Sistema Eletrônico de Execução Unificado, Santa Catarina conta com 52 estabelecimentos prisionais. Destes, apenas 20 estão em boas condições, ou seja, menos da metade, 18 em condições regulares, 10 em péssimas condições e 4 em condições ruins (Obs. Dados consultados no CNJ em 14-08-21). De todo modo, cá entre nós, eu nem precisaria tratar desses números para sabermos que o sistema carcerário está falido e/ou fadado ao insucesso.

Continuemos. De fato, essa coisa que costuma armazenar carga não é e nunca será um espaço destinado a receber pessoas. É algo bárbaro e que nos remete aos anos pretéritos a reclusão de pessoas em contêineres em pleno Século xxi? Penso que sim. Mas aqui precisamos ir além: inobstante esse cenário triste e nada otimista, independente de onde o preso estiver, é preciso que esteja, ao menos ao meu sentir, no melhor lugar considerando a realidade concreta apresentada e disponível. Portanto, ofereço mais ingredientes.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina reformou a decisão que interditou as celas contêineres, mas o fez ponderando que essas celas em questão não apresentaram problemas estruturais, ostentaram camas individuais, televisores e ventiladores e que os presos externalizaram o desejo de nestas permanecerem, sobretudo para ficarem próximos da família.

Acredito que chegamos, enfim, ao tema que virou título desde despretensioso texto.

O Ministério Público, talvez dentro de sua atribuição, condenou a utilização dos contêineres, mas é importante observar que as normas (fundamentos) utilizadas por essa instituição de relevância ímpar não formaram nada mais que uma mera discussão teórica acerca da já sabida inadequação da estrutura que hoje disponibilizamos aos presos. Ora, não precisamos ler livro algum para sabermos que contêineres não servem para guardar pessoas; mas também não precisamos ler muitas páginas de algum livro ou revista ou assistir a um documentário ou matéria de jornal para saber que nossas celas igualmente não conseguem dar conta do recado. Então qual era a proposta do Ministério Público neste caso?

Bem, mais vale a efetivação concreta de direitos constitucionalmente assegurados do que a mera enunciação desses direitos. Esperemos, claro, que ambos possam coexistir, mas, se isso não puder acontecer, entendo que devemos optar pela (tentativa de) concretização real dessas garantias.

O Ministério Público acertou ao observar que a manutenção de pessoas em contêineres é e sempre será, em regra, inconstitucional. Todavia, acerto esse se dá sob o ponto de vista teórico. Ademais, sem adentrar no fato de que a manutenção dos presos nas nossas atuais celas também é inconstitucional, a permanência dos detentos nos contêineres neste caso concreto enfrentado parece violar menos – por assim dizer – direitos fundamentais.

O diálogo entre teoria e a realidade é essencial. Acredito que somente a partir dessa conversa teremos um resultado mais adequado para um grave problema como este.

Por isso, penso então ter sido absolutamente cirúrgico o Min. Herman Benjamin, relator do recurso, ao reconhecer que  a ‘utilização de contêineres para a construção de celas não atende de fato ao ideal preconizado pela legislação federal e que o estado de todo o sistema carcerário do país é inconcebível e quase sempre importa em violação à dignidade do preso’ e, principalmente, que esse cenário impede que ‘este caso seja decidido com base em valores abstratos, sem que sejam enfrentados os fatos concretos’.

Foi um prazer!

t.s 

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