'Como se sente estando no lado dos maus?'
Era um jantar normal com amigos da família quando, como sempre acabava acontecendo, me perguntaram sobre a minha vida profissional. Acredito que estava torcendo por essa pergunta, já que há poucos dias havia fechado contrato para atuar em uma operação grande. Expliquei o que isso significava e, brevemente, que minha cliente estava sendo denunciada por envolvimento no crime de organização criminosa. Em outros textos, eu teria escrito que minha cliente estava sendo denunciada por um suposto envolvimento em uma organização criminosa, mas, como uma acusação pressupõe apenas uma hipótese [que precisa ser naturalmente confirmada], deixei esse importante termo de lado desta vez.
Depois disso, a pergunta ‘como se sente estando no lado dos maus?’ [acho que a pergunta foi mais ou menos essa] foi feita. Esse questionamento veio ainda acompanhado por um desabafo ‘não consigo entender’.
Essa pergunta soou tão bem que aqui estou, escrevendo. Sim, soou bem porque eu não teria nenhum problema em respondê-la. Em minha cabeça havia inúmeras respostas possíveis para essa questão. Todas elas, ao menos ao meu sentir, bastante razoáveis. Até por isso imagino ter dado um sorriso, ainda que tímido.
Mas ao mesmo tempo em que ficava satisfeito por ter respostas na ponta da língua, via a expressão de quem me fez a pergunta. Um rosto que apresentava toques de tristeza e, principalmente, de frustração. Todos esses sentimentos justificados pela absoluta certeza daquilo que havia sido dito, minha cliente era má.
Esclareci então os pontos que eu julgava ser os primordiais, mas não aprofundei a discussão. Tentei ser objetivo e cirúrgico. Não sei se atingi meu objetivo, devo confessar.
Agora, nesse meu espaço, vou alongar um pouco mais. Lembro que eu disse que ela, como cidadã, poderia ter esse tipo de opinião, mas alertei, logo na sequência, que esse pensamento é rigorosamente o mesmo que muitos juízes têm.
Esse questionamento me chamou a atenção por duas razões.
A nossa comunidade desconsidera qualquer expressão que deva estar acompanhada de uma significação do mundo do direito. Explico melhor. Frases como fulano foi acusado, fulano foi denunciado e foi decretada a prisão de fulano representam apenas culpa para a comunidade. Não existe espaço para que a comunidade compreenda que a acusação e a denúncia querem significar a existência de meros indícios de materialidade e autoria delitiva, que há, até o momento, apenas suspeitas. Assim como não há espaço para compreensão de que a prisão pode servir tão somente para garantir que o processo ocorra sem maiores problemas. Esses detalhes – que, em verdade, são os que importam – não são compreendidos.
E infelizmente há mais. Ao mesmo tempo que não se compreende essas questões, acabam sendo marginalizadas e banalizadas questões cruciais em termos de direitos e garantias. E não, não é mimimi. Ao tempo que a sociedade entende que o denunciado, o acusado e o preso [não definitivo] são culpados, o processo passa a correr por mera formalidade [literalmente]. A inocência, nesse enredo, é o principal atributo que todos nós perdemos. Somos agora culpados até que se prove o contrário.
Ainda, parece existir uma cegueira voluntária em relação aos inúmeros erros do judiciário. A mesma mídia que nos bombardeia com matérias sensacionalistas pode nos fornecer informações acerca desses graves equívocos.
A pergunta que me foi feita me chamou atenção também por uma outra razão. Se afirmamos que há uma pessoa má ou que há pessoas más, estamos afirmando também que há pessoas boas. Acabamos nos colocando na posição de julgadores e definimos tranquilamente quem deve ficar no lado bom e quem deverá ficar no lado mau. Questiono-me se alguém poderia dizer quais critérios foram [ou podem ser] escolhidos para separar os bons dos maus.
Essa dicotomia é bastante preocupante. Tudo indica que são critérios, isso quando escolhidos, não só aleatórios, mas conduzidos por circunstâncias que estes julgadores sequer conseguem perceber. Sem falar ainda da facilidade que as pessoas têm de se colocarem como pessoas boa. Afinal, o que torna uma pessoa boa? Bem, isso fica para um outro texto. Por hoje é só.
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