15 anos de solidão

Estamos em 2021. Imagine que você está andando por uma rua do seu bairro, tranquilamente, como sempre faz. Aquele caminho que você precisa fazer até chegar na pequena e gostosa panificadora do seu João. Os pães de lá são ótimos e você está mais que ansioso para levá-los logo para casa e poder comê-los com seu pai, mãe e sua filhinha. Imagine agora que, no percurso, agentes da polícia te abordam e te informam que você está sendo acusado de um crime grave. Você nega, claro, afinal, pouco entende o que está acontecendo, mas não lhe dão ouvidos. Você é conduzido então à delegacia e, de lá, para uma penitenciária de uma cidade da região metropolitana da Capital onde mora(va). Nada mais acontece. Nada mesmo.

Estamos em 2036. Você acorda, abre os olhos e recebe a notícia da sua vida. Poderá sair, enfim, da prisão. Ao chegar, finalmente, em sua casa, acha as coisas um pouco diferentes. Sequer encontra a velha panificadora de sempre. Acha seus pais (bem) diferentes. Você é recebido, inclusive, com certo espanto e dúvidas. Quase não reconhece sua filha, uma mulher de quase 30 anos já. Fica sabendo que seu João faleceu há 8 anos.

A sua vida continua, talvez não por vontade própria, mas simplesmente porque o tempo não para.

Poderia essa história compor um capítulo de um livro de ficção, mas trata-se – sim - de um capítulo da biografia de Cicéro José de Melo, jardineiro cearense preso em 2005 e solto em 2021 pela prática de um suposto crime que nunca foi investigado e processado.

Tanto clamamos por punição que esquecemos o que vem depois dela, ou melhor, esquecemos que vem algo após. Clamamos tanto por um maior rigor nas penas que nos satisfazemos com a mera resposta penal do Estado. Parece que nosso papel é apenas exigir punições mais severas e ignorar que haverá o processo da execução dessa punição. Sim, a pena tem suas funções, dentre elas possibilitar o (re)ingresso do condenado ao meio social. O Estado, por sua vez, se envaidece quando decreta a punição de alguém, superlotando cada vez mais o já falido sistema carcerário.

No caso que aqui te contei, querem saber agora porque Cícero ficou 15 anos preso sem ter existido sequer um processo, querem providências, querem buscar responsáveis. Verdade seja dita, é fácil compreender o que aconteceu. Não houve falha, não houve erro. Houve o que sempre existiu: um evidente desinteresse pelo que acontece após a entrada da pessoa no sistema prisional. Cícero sentiu na pele e nos fez entender o conceito mais preciso de abandono, de ser literalmente esquecido 

Quando falamos em prisão, em liberdade, o estrito cumprimento das leis e principalmente das diretrizes constitucionais ganha uma magnitude ímpar. A luta para que essas normas sejam respeitadas é necessária, ainda mais por saber que existem milhares de outros Cíceros por aí. Falo aqui de empatia também.

Foi um prazer!

t.s

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

'Como se sente estando no lado dos maus?'

O nascimento do direito ao não esquecimento

A perda de uma chance: a falência [anunciada] do Acordo de Não Persecução Penal